O que é a ação revisional?
Você já teve a sensação de que está pagando juros absurdos em um financiamento? Aquele sentimento de que, não importa quantas parcelas você pague, a dívida parece não diminuir? Infelizmente, essa é a realidade de milhões de brasileiros presos em contratos de financiamento de veículos, empréstimos pessoais, cartões de crédito e até imóveis.
Muitas vezes, a armadilha não está apenas na sua gestão financeira, mas escondida nas entrelinhas do contrato que você assinou. Cláusulas ilegais, taxas embutidas e a famosa capitalização de juros (juros sobre juros) podem transformar um sonho, como o do carro novo, em um verdadeiro pesadelo financeiro.
Mas existe uma luz no fim do túnel. A legislação brasileira protege o consumidor contra práticas abusivas. Uma das ferramentas mais poderosas para isso é a Ação Revisional de Contrato.
Se você suspeita que está sendo lesado por um banco ou financeira, este artigo é o seu guia definitivo. Vamos desmistificar o que é a ação revisional, para quem ela serve, quais são os riscos e benefícios, e como ela pode ser o caminho para você retomar o controle da sua vida financeira.
O que é, Exatamente, uma Ação Revisional de Contrato?

Em termos simples, a Ação Revisional de Contrato é um processo judicial. É o ato de levar seu contrato financeiro (seja de empréstimo, financiamento, leasing ou cartão de crédito) para um juiz analisar.
O objetivo? Pedir que o juiz “revise” as cláusulas desse contrato.
Pense nisso como chamar um árbitro especialista para uma partida onde você acha que o outro time (o banco) está jogando sujo. O “árbitro” (o juiz) vai pegar o “livro de regras” (a lei, especialmente o Código de Defesa do Consumidor – CDC) e verificar se todas as cláusulas do seu contrato são justas, legais e se não estão em desacordo com o que foi prometido ou com o que a lei permite.
O principal alvo desse tipo de ação são os juros abusivos e outras cobranças ilegais que, infelizmente, são comuns no mercado.
Juros Abusivos: O Principal Motivo para Entrar com uma Revisional
Este é o coração da maioria das ações revisionais. Mas o que, de fato, são “juros abusivos”?
É um erro comum pensar que “juro abusivo” é qualquer taxa de juro que parece alta. Para a justiça, o conceito é técnico. Juros são considerados abusivos quando estão significativamente acima da taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil (BACEN).
Como funciona na prática:
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O Banco Central coleta dados de todas as instituições financeiras e publica, mensalmente, uma tabela com a taxa de juros média que foi cobrada em cada modalidade de crédito (financiamento de veículos, empréstimo pessoal, cheque especial, etc.).
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Seu advogado ou um perito contábil pegará o seu contrato e comparará a taxa de juros que você está pagando com a taxa média que o BACEN divulgou na época em que você assinou o contrato.
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Se a sua taxa for muito superior (a justiça não dá um número exato, mas discrepâncias de 50%, 80% ou 100% acima da média são fortes candidatos), ela pode ser considerada abusiva.
O juiz, então, tem o poder de limitar os juros do seu contrato àquela taxa média de mercado, forçando um recálculo de toda a sua dívida.
Quais Contratos Podem Ser Revisados Judicialmente?
Teoricamente, qualquer contrato pode ser revisado se houver ilegalidades. No entanto, no mundo financeiro, os campeões de ações revisionais são:
1. Financiamento de Veículos (Carros, Motos, Caminhões)
Este é, de longe, o tipo mais comum. Além dos juros abusivos, é frequente encontrar a prática de “venda casada”. O banco “empurra” seguros, títulos de capitalização ou serviços que você não pediu, inflando o valor da sua parcela. Taxas ilegais, como a TAC (Taxa de Abertura de Crédito) e a TEC (Taxa de Emissão de Carnê), embora permitidas em contratos mais antigos, hoje são frequentemente questionadas e podem ser restituídas.
2. Empréstimos Pessoais e Consignados
Embora o empréstimo consignado tenha juros mais baixos, ele não está imune a abusos. A revisão pode focar em juros acima da média (sim, acontece!), seguros embutidos sem o seu conhecimento claro ou prazos excessivamente longos que mascaram juros capitalizados de forma indevida.
3. Dívidas de Cartão de Crédito (Rotativo)
O rotativo do cartão de crédito tem os juros mais altos do mercado. Embora taxas elevadas sejam “normais” nessa modalidade, a justiça pode intervir quando há falta de transparência, cobrança de taxas ilegais ou quando o banco dificulta a renegociação, forçando o cliente a uma bola de neve impagável. A ação revisional aqui pode buscar um recálculo total da dívida com juros mais justos, como os da média do BACEN para empréstimo pessoal.
4. Cheque Especial
Similar ao cartão de crédito, o cheque especial é uma bomba-relógio. A ação revisional pode questionar a capitalização diária dos juros e a falta de informação clara ao consumidor, buscando transformar essa dívida em um “empréstimo” comum, com taxas muito menores.
5. Financiamento Imobiliário
Embora mais raros, casos de revisão em financiamentos imobiliários existem. Eles geralmente focam em irregularidades na correção do saldo devedor, problemas com o sistema de amortização (como a Tabela Price) ou cobrança de taxas indevidas durante a construção.
Como Saber se o Seu Contrato Tem Cláusulas Abusivas?

Você não precisa ser um advogado para ter uma “pulga atrás da orelha”. Se você suspeita que algo está errado, comece fazendo uma verificação básica:
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Passo 1: Encontre seu Contrato: Pegue o contrato original (o Custo Efetivo Total – CET – é a informação mais importante) ou, se não o tiver, peça uma segunda via ao banco (é seu direito).
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Passo 2: Identifique sua Taxa de Juros: Procure pela “taxa de juros mensal” e “taxa de juros anual” e, principalmente, pelo CET (Custo Efetivo Total). O CET inclui juros, taxas, seguros e tudo mais.
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Passo 3: Consulte o BACEN: Pesquise no Google: “Taxa média de juros Banco Central [modalidade] [mês e ano]”. Por exemplo: “Taxa média de juros Banco Central financiamento de veículos abril 2023”.
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Passo 4: Compare: A taxa de juros (CET) do seu contrato é muito maior que a média do BACEN na época? Se a média era 1,5% ao mês e seu contrato é de 2,5% ao mês, você tem um forte indício de abusividade.
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Passo 5: Leia as Taxas: Você encontra cobranças como “Taxa de Avaliação do Bem”, “Tarifa de Cadastro”, “Seguro Prestamista” ou “Título de Capitalização”? Verifique se você realmente concordou com elas ou se foram impostas (venda casada).
Se você encontrar essas discrepâncias, o próximo passo é procurar um profissional.
O que é Anatocismo? A Prática Ilegal (ou Nem Sempre) de Juros sobre Juros
Vamos entrar em um tópico um pouco mais técnico, mas que é fundamental: o anatocismo.
Anatocismo é o nome jurídico para a capitalização composta de juros, ou seja, a cobrança de juros sobre juros.
Imagine que você deve R$ 1.000 com juros de 10% ao mês.
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No primeiro mês, você deve R$ 100 de juros (total R$ 1.100).
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No segundo mês, se houver anatocismo, os juros de 10% não serão sobre os R$ 1.000 originais, mas sobre os R$ 1.100 (totalizando R$ 110 de juros).
Essa prática faz a dívida crescer exponencialmente.
O anatocismo é ilegal?
Resposta: Depende. Por muito tempo, foi considerado ilegal na maioria dos contratos. Hoje, a regra (decidida pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ) é a seguinte:
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A capitalização de juros (anatocismo) em períodos inferiores a um ano (ex: mensal) é permitida em contratos financeiros.
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PORÉM, ela só é válida se estiver expressa e claramente pactuada no contrato.
A grande “briga” judicial hoje é: o que é “pactuado claramente”? Muitas vezes, os bancos colocam isso em letras minúsculas ou usam termos técnicos. A famosa Tabela Price, usada na maioria dos financiamentos, tem anatocismo em sua fórmula matemática. Se o contrato não avisar claramente que usa a Tabela Price (ou outro método capitalizado), o consumidor pode pedir na justiça para que os juros sejam recalculados de forma simples (sem anatocismo).
Passo a Passo: Como Funciona o Processo de Ação Revisional?
Decidiu que vale a pena investigar? O processo judicial geralmente segue estas etapas:
1. A Consulta e Análise (Pré-Processo)
Tudo começa com um advogado especialista em Direito Bancário ou Direito do Consumidor. Cuidado com promessas fáceis. Um bom profissional não garante resultado; ele analisa o caso.
2. A Perícia Contábil (Cálculo Revisional)
O advogado (ou você) contrata um contador ou perito financeiro. Esse profissional fará o “Cálculo Revisional”. Ele vai recalcular toda a sua dívida, tirando os juros abusivos, as taxas ilegais e o anatocismo (se for o caso), e aplicar a taxa de juros correta (a média do BACEN). O resultado desse cálculo mostra duas coisas:
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Qual deveria ser o valor correto da sua parcela.
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Quanto você já pagou a mais até agora.
3. A Petição Inicial
Com o cálculo em mãos, o advogado entra com a ação. Ele apresenta ao juiz o contrato original, o cálculo pericial e todos os argumentos legais que provam o abuso.
4. O Pedido de “Liminar” (Tutela Antecipada)
Este é um momento crucial. O advogado pede ao juiz uma decisão rápida e provisória (a “liminar”) para:
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Autorizar o Depósito Judicial: Permitir que você pague, em uma conta judicial, apenas o valor incontroverso (o valor da parcela que o seu perito calculou como sendo o correto).
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Impedir a Negativação: Ordenar que o banco não coloque seu nome no SPC/Serasa por causa dessa dívida enquanto o processo durar.
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Manter o Bem (Ex: Veículo): Garantir que o banco não possa entrar com uma Ação de Busca e Apreensão do seu carro, desde que você esteja depositando o valor em juízo.
5. A Defesa do Banco (Contestação)
O juiz pode dar ou não a liminar. Em seguida, o banco é chamado ao processo para se defender. Ele apresentará os argumentos dele, dizendo que o contrato é legal e que você assinou por livre e espontânea vontade.
6. A Sentença e os Recursos
Após analisar as provas e argumentos de ambos os lados (às vezes é necessária uma perícia do próprio juiz), o juiz dará a sentença, decidindo quem tem razão. Ele pode:
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Julgar a ação procedente: Dar ganho de causa a você, mandando o banco recalcular a dívida e devolver o que foi pago a mais.
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Julgar parcialmente procedente: Concordar com alguns pontos (ex: tirar uma taxa), mas não com outros (ex: manter os juros).
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Julgar improcedente: Dar ganho de causa ao banco, decidindo que o contrato é 100% legal.
Mesmo após a sentença, ambos os lados podem recorrer para instâncias superiores (Tribunal de Justiça, STJ), o que pode fazer o processo levar anos.
Riscos e Benefícios: Vale a Pena Entrar com uma Ação Revisional?

Essa é a pergunta de um milhão de reais. É fundamental ter os pés no chão e entender que uma ação judicial não é uma “fórmula mágica”.
Benefícios (O Lado Bom)
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Redução Drástica da Dívida: Se a abusividade for comprovada, seu saldo devedor pode cair 30%, 50% ou até mais.
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Parcelas que Cabem no Bolso: O valor da prestação mensal é recalculado para um patamar justo.
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Restituição de Valores (Repetição de Indébito): Se o cálculo mostrar que você já pagou a mais, o banco pode ser condenado a devolver esse dinheiro, muitas vezes em dobro (dependendo do caso).
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“Limpar o Nome”: Se a liminar for concedida, seu nome fica protegido durante o processo.
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Manutenção do Bem: A liminar impede que o banco tome seu carro ou imóvel.
Riscos (O Lado Ruim)
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Perder a Ação: Este é o maior risco. Se o juiz entender que o contrato é legal, você não só continuará devendo o valor original, como terá que pagar os custos do processo e os honorários do advogado do banco (chamados de “sucumbência”).
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Não Conseguir a Liminar: O juiz pode negar o pedido de depósito judicial ou de proteção contra a busca e apreensão. Se isso acontecer e você parar de pagar a parcela cheia, o banco pode negativar seu nome e tomar o seu bem.
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Custos Iniciais: Você terá que pagar os honorários do seu advogado e o custo da perícia contábil inicial, independentemente do resultado.
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Tempo: Um processo judicial é lento. Pode levar de 2 a 5 anos, ou mais, para uma decisão final.
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Relação com o Banco: Sua relação com aquela instituição financeira ficará estremecida, o que pode dificultar futuros créditos naquele banco.
Ação Revisional de Financiamento de Veículo: O Que Fazer para Não Perder o Carro?
Este é o medo número 1 de quem financia um veículo. A Ação Revisional e a Ação de Busca e Apreensão são como dois trens correndo em trilhos paralelos.
Se você simplesmente parar de pagar as parcelas para entrar com a revisional, o banco vai entrar com a busca e apreensão.
A regra de ouro é: NUNCA pare de pagar seu financiamento por conta própria.
A única forma segura de suspender ou reduzir o pagamento é com uma ordem judicial (a liminar que explicamos). Se o juiz autorizar você a depositar em juízo um valor menor, você estará protegido. Se você não tiver essa autorização, deve continuar pagando as parcelas normalmente, mesmo com a ação revisional correndo.
Se você já está com parcelas atrasadas, a revisional pode ser usada como uma matéria de defesa dentro do processo de busca e apreensão, mas a situação fica muito mais delicada.
Alternativas à Ação Revisional: Negociação e Portabilidade
Antes de se aventurar em um processo judicial longo e custoso, sempre explore alternativas mais rápidas e baratas:
1. Negociação Extrajudicial
Ligue para o banco. Vá à agência. Use plataformas como o Consumidor.gov.br ou o Procon. Mostre que você quer pagar, mas que os juros estão impeditivos. Muitas vezes, o banco prefere dar um bom desconto e receber algo do que arriscar uma ação revisional e não receber nada por anos.
2. Portabilidade de Crédito
Se você está em dia com as parcelas, mas acha os juros altos, a portabilidade é sua melhor amiga. Você pode “vender” sua dívida para outro banco que ofereça uma taxa de juros menor. Isso é um direito seu, garantido pelo Banco Central. É rápido, de graça e resolve o problema sem precisar de advogado.
3. Lei do Superendividamento (Lei 14.181/2021)
Se o seu problema não é apenas um contrato, mas um volume total de dívidas que consome sua renda e compromete seu “mínimo existencial” (o básico para viver), você pode se beneficiar da nova Lei do Superendividamento. Ela permite um processo de repactuação global de todas as suas dívidas (exceto financiamento imobiliário e crédito rural) em um único plano de pagamento de até 5 anos.
A Ação Revisional é a Solução para Você?

A Ação Revisional de Contrato é um direito legítimo e uma ferramenta poderosa de justiça, mas não é uma solução mágica. Ela é uma “cirurgia” complexa, indicada para casos claros e comprovados de abusividade.
Ela não é para quem simplesmente se arrependeu da compra ou está com dificuldade de pagar por um descontrole financeiro. Ela é para quem foi vítima de taxas ilegais, juros muito acima da média do mercado ou práticas de venda casada.
O que fazer agora?
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Organize-se: Ache seu contrato e faturas.
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Compare: Faça a verificação inicial com os dados do BACEN.
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Consulte um Profissional: Este é o passo mais importante. Procure um advogado especialista de sua confiança. Peça uma análise sincera do seu contrato. Desconfie de quem promete “causa ganha” ou cobra valores muito baixos para “resolver tudo”.
A informação é sua maior aliada. Entender seus direitos é o primeiro passo para se livrar das dívidas abusivas e reconquistar sua saúde financeira.