Como funcionam os repasses do governo e o impacto nos estados e municípios
Você já se perguntou para onde vai o dinheiro do seu Imposto de Renda? Ou por que cidades tão pequenas, sem grandes empresas, conseguem manter um hospital, escolas e pagar salários? A resposta para essas perguntas está em uma das engrenagens mais complexas e vitais do Brasil: os repasses governamentais.
Muitas pessoas acreditam que o dinheiro arrecadado em impostos fica “preso” em Brasília. A realidade é bem diferente. O Brasil é uma República Federativa, o que significa que o poder (e o dinheiro) é dividido entre a União (o governo federal), os Estados e os Municípios.
No entanto, essa divisão não é simples. O governo federal arrecada a maior parte dos impostos mais “ricos” (como o Imposto de Renda e o IPI). Se esse dinheiro não fosse redistribuído, teríamos estados e cidades ricos ficando cada vez mais ricos, e regiões inteiras do país sem condições de prover o mínimo, como saúde e educação.
É aqui que entram os repasses. Eles são o “sistema circulatório” financeiro do país, levando recursos das áreas de maior arrecadação para todas as pontas da nação. Entender como eles funcionam é crucial não apenas para cobrar nossos políticos, mas para tomar decisões de negócios, avaliar investimentos e entender o real impacto dos seus impostos no asfalto da sua rua.
O que é o “Pacto Federativo” e por que os Repasses Existem?

O Brasil é formado por três “sócios”: a União, 26 Estados (+ o Distrito Federal) e 5.570 Municípios. O “contrato” que rege a relação entre eles é o Pacto Federativo, definido na Constituição de 1988.
O problema central que o Pacto tenta resolver é o desequilíbrio fiscal. Funciona assim:
- Arrecadação Centralizada: A União arrecada os impostos de maior volume, como o Imposto de Renda (IR) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
- Responsabilidades Descentralizadas: Por outro lado, a Constituição diz que são os Municípios e Estados que devem cuidar da maior parte da sua vida: o posto de saúde, a escola do seu filho, o policiamento na sua rua e o asfalto.
Percebe o problema? Quem tem as maiores responsabilidades (Estados e Cidades) não tem o maior volume de arrecadação. O IPTU e o ISS (municipais) ou o ICMS (estadual) não são suficientes, especialmente em regiões mais pobres.
Os repasses (ou transferências) são a solução para isso. A União é obrigada por lei a pegar uma fatia generosa do “bolo” de impostos que arrecadou e repassar para os Estados e Municípios. O objetivo principal é reduzir as desigualdades regionais e garantir que um cidadão em uma pequena cidade do interior tenha acesso a serviços mínimos, assim como quem mora em uma grande capital.
Os “Dois Pilares”: O que são o FPE e o FPM?
Quando falamos em repasses, dois nomes são os gigantes do sistema. Eles são os principais canais de distribuição de dinheiro “não carimbado”, ou seja, que o governador ou prefeito tem (certa) liberdade para usar.
O dinheiro para ambos vem do mesmo lugar: um percentual do que a União arrecada com o Imposto de Renda (IR) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
1. FPE (Fundo de Participação dos Estados)
Como o nome diz, este é o fundo destinado aos Estados. É a principal transferência da União para os governos estaduais.
- Como funciona? A União separa uma fatia do IR e IPI e a distribui entre os 26 estados e o Distrito Federal.
- Como é dividido? Esta é a parte complexa. A divisão não é igualitária. Ela segue regras constitucionais que buscam beneficiar os estados mais pobres. Os estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste recebem uma fatia proporcionalmente muito maior do que os do Sul e Sudeste.
- O “Robin Hood” Fiscal: A lógica é “tirar” do bolo total (onde São Paulo e Rio contribuem mais) e “dar” mais para estados com menor poder de arrecadação. Por isso, estados como Piauí ou Acre dependem imensamente do FPE para fechar suas contas, enquanto São Paulo depende mais do seu próprio ICMS.
2. FPM (Fundo de Participação dos Municípios)
Este é, talvez, o repasse mais vital para o Brasil. O FPM é o que financia a existência da grande maioria das 5.570 cidades brasileiras.
- Como funciona? Outra fatia do bolo de IR e IPI é destinada a todos os municípios do país.
- Como é dividido? A regra é baseada em “coeficientes” por faixa populacional. Cidades menores (até 10.188 habitantes) recebem um coeficiente mínimo. Cidades maiores recebem mais.
- A “Guerra do Censo”: Você já se perguntou por que prefeitos brigam tanto por causa do Censo do IBGE? É por causa do FPM. Se um censo mostra que a população da cidade diminuiu e ela “caiu” de faixa, o prefeito pode perder milhões em repasses no ano seguinte. Isso pode quebrar uma cidade pequena.
- A Realidade de “Pequenópolis”: Estima-se que mais de 70% das cidades brasileiras têm no FPM sua principal fonte de receita. Elas não sobrevivem do IPTU ou ISS local. Elas existem, financeiramente, por causa do FPM.
O Dinheiro “Carimbado”: Repasses Obrigatórios para Saúde e Educação
Se o FPE e o FPM são o dinheiro que o gestor pode usar para (em tese) tapar buracos, pagar a luz da prefeitura ou fazer uma praça, existe outra categoria de repasses: o dinheiro “carimbado”.
Esse dinheiro sai de Brasília com um destino certo, e o prefeito ou governador não pode usá-lo para outra coisa. Os dois maiores e mais importantes são para Saúde e Educação.
1. O SUS (Sistema Único de Saúde)
O SUS é um sistema tripartite (União, Estados e Municípios). A parte federal do financiamento é feita por transferências “fundo a fundo”.
- Como funciona? O dinheiro sai do Fundo Nacional de Saúde (em Brasília) e vai direto para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde.
- Onde pode ser usado? Apenas em ações de saúde: comprar remédios, pagar médicos e enfermeiros, construir postos de saúde, financiar campanhas de vacinação, etc.
- O Impacto: É esse dinheiro que permite que o posto de saúde do seu bairro funcione. Se o repasse federal atrasa, o atendimento na ponta é imediatamente afetado.
2. O FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica)
O FUNDEB é o maior exemplo de como o Brasil tenta equalizar as oportunidades educacionais. Ele é um fundo gigantesco, composto por dinheiro dos próprios Estados, dos Municípios e de uma complementação da União.
- Como funciona? Todo o dinheiro de impostos ligados à educação é colocado em um “cofrão” estadual. Esse total é então redistribuído entre o estado e seus municípios, não com base em quem arrecadou, mas com base no número de alunos matriculados.
- O Papel da União: Se, mesmo após essa redistribuição, o valor “por aluno” de um estado ainda for muito baixo, a União entra com um repasse extra (a complementação) para garantir um padrão mínimo de investimento.
- O Impacto: O FUNDEB é o que paga a maior parte do salário dos professores da rede pública, financia o transporte escolar (o “ônibus amarelo”) e a merenda. É o principal motor da educação básica no país.
O Impacto Real nos Estados e Municípios: Da Oportunidade ao Risco

O fluxo constante de repasses molda a economia e a política do Brasil.
O Lado Positivo: A Redução da Desigualdade
Sem os repasses, o Brasil seria ainda mais desigual. Cidades e estados pobres não teriam a menor condição de oferecer serviços básicos. O FPE, o FPM, o SUS e o FUNDEB são o que garante um padrão mínimo de cidadania em um país continental e diverso.
Eles permitem que um hospital seja construído no sertão, que uma escola funcione na Amazônia e que um médico seja pago em uma pequena vila de pescadores.
O Lado Negativo: A “Síndrome da Dependência”
O sistema, no entanto, cria uma disfunção grave: a dependência fiscal.
Muitos municípios (e alguns estados) se acostumaram a viver apenas dos repasses. O prefeito não se esforça para modernizar a cobrança do IPTU ou para atrair novas empresas (que gerariam ISS), pois sabe que o dinheiro do FPM vai “cair na conta” de qualquer jeito.
- O “Prefeito-Gerente”: O gestor local deixa de ser um líder de desenvolvimento econômico e vira apenas um “gerente de transferências”, cujo principal trabalho é administrar a folha de pagamento e torcer para o FPM não cair.
- A “Indústria de Municípios”: No passado, vimos um movimento de “emancipação” de distritos que se tornavam cidades. Muitas vezes, o único motivo era ter um CNPJ próprio para receber o FPM, criando cidades-fantasma sem nenhuma economia local.
E o Meu Bolso? A Conexão dos Repasses com Suas Finanças, Negócios e Investimentos
Este é um tema de finanças públicas, mas ele afeta o seu site de finanças, negócios e investimentos mais do que você imagina.
1. Para o Dono de Negócio (Seu Público de “Negócios”)
Se você tem uma empresa, especialmente se vende para o governo ou depende do comércio local, os repasses são seu assunto.
- O Governo como Cliente: O governo (municipal, estadual) é o maior comprador do país. Se você é um fornecedor (vende de canetas a serviços de engenharia), sua capacidade de receber em dia depende diretamente da saúde financeira da prefeitura. E a saúde da prefeitura depende… dos repasses.
- A Economia Local: Em uma cidade pequena, o maior empregador é a prefeitura. Se os repasses (FPM) caem (por exemplo, durante uma crise econômica nacional, onde a arrecadação de IR e IPI diminui), a prefeitura atrasa salários. O comércio local (sua loja, seu restaurante) para de vender, pois o dinheiro some da praça.
2. Para o Investidor (Seu Público de “Investimentos”)
Um investidor inteligente não olha apenas para o balanço da empresa; ele olha para o ambiente onde ela atua.
- Risco Municipal/Estadual: Você investe em uma empresa de saneamento (como a Sabesp ou Copasa) ou de energia (como a Cemig)? Essas empresas têm contratos de concessão com estados e municípios. A capacidade desses governos de honrar os contratos e pagar pelas obras depende do fluxo de repasses.
- Análise de Ações: Você investe em uma varejista com forte presença no Nordeste? Você precisa entender que o FPE e programas sociais (que também são repasses) irrigam a economia local. Uma mudança nas regras do FPE pode impactar o poder de compra da região e, por tabela, as vendas da empresa na qual você investe.
3. Para o Cidadão (Seu Público de “Empréstimos” e “Cartões”)
A conexão mais direta é com seus impostos.
- Para onde vai o IR: O Imposto de Renda que você paga não fica só em Brasília para pagar a dívida pública. Ele volta para sua cidade na forma do FPM (que tapa o buraco da rua) e do FUNDEB (que paga o professor do seu filho).
- Finanças Pessoais e Crédito: A saúde financeira do seu estado e cidade afeta o seu “custo de vida”. Um estado quebrado (com repasses em queda) pode aumentar o ICMS da gasolina. Uma cidade sem dinheiro pode aumentar o IPTU. Isso impacta diretamente seu orçamento pessoal e sua capacidade de honrar seu
empréstimoou a fatura docartão de crédito.
Fiscalização: Quem Garante que o Dinheiro Chegou e Foi Bem Usado?

Com tanto dinheiro trocando de mãos, a fiscalização é fundamental. O sistema não é perfeito, mas existem mecanismos claros.
- Tribunal de Contas da União (TCU): Fiscaliza os repasses da União. Ele verifica se a União calculou e entregou o FPE/FPM corretamente.
- Tribunais de Contas dos Estados (TCEs): Fiscalizam como os prefeitos usaram o dinheiro que receberam (tanto os repasses quanto a arrecadação própria). Se um prefeito usar dinheiro do FUNDEB para fazer um show, ele será pego pelo TCE.
- Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): É a lei mais importante para gestores. Ela impõe limites rígidos de como esse dinheiro pode ser gasto (por exemplo, um limite máximo com folha de pagamento), forçando o prefeito a ser, no mínimo, responsável.
- Portal da Transparência: Hoje, todos os repasses são públicos. Qualquer cidadão pode entrar no site do Tesouro Nacional e ver exatamente quanto sua cidade recebeu de FPM, SUS ou FUNDEB no último mês.
Os Repasses são o “Sangue” do Organismo Brasileiro
O sistema de repasses do Brasil é um dos mais complexos e abrangentes do mundo. Ele é o mecanismo que tenta manter um país com dimensões continentais e desigualdades históricas minimamente coeso e funcional.
Eles não são um “favor” de Brasília; são uma obrigação constitucional, financiada pelos impostos que todos nós pagamos.
Entender que o dinheiro do Imposto de Renda em São Paulo ajuda a financiar uma escola no Maranhão (via FPE e FUNDEB), e que esse mesmo mecanismo garante o funcionamento da prefeitura da sua pequena cidade (via FPM), é o primeiro passo para uma cidadania financeira completa. Você passa a entender o valor do seu imposto, a importância da economia local e a responsabilidade imensa que prefeitos e governadores têm ao gerenciar esse dinheiro que, no fim do dia, é de todos nós.